quinta-feira, 31 de maio de 2018

O Bom Soldado e o Sonho da Frequesia: A defesa da mediocridade para quem nunca soube que era possível não ser medíocre.

Perdoem-me um título tão excessivo (em todas as possibilidades e ambiguidades que essa palavra possa acalentar), mas é que isso ajuda a acalmar a fúria que sinto quando vejo alguém usar o DIREITO de livre opinião, aliás,  livre, gratuito e universal, conquistado por "comunas, bandidos, moleques, esquerdistas, rebeldes” para pedir a volta a um tempo em que não se podia “dizer”, por ser impedido, também, por ter sido ensinado a calar-se, a envolver-se com a mediocridade por, entre outras coisas, não saber nem defini-la (percebê-la), tampouco por ter tido poucas oportunidades de se defrontar com uma outra possibilidade, outro caminho. 

Bem, vou direto ao ponto: Se você clama em 2018 pela volta à Ditadura, se você é daqueles que sente saudades desse tempo, se pede intervenção militar, este texto é pra você. Preciso aproveitar o que me resta de liberdade antes que você tenha a oportunidade de me denunciar e me mandar (Em nome de Deus) para os braços do capeta (Pau de Arara, Fogueiras ou alguns de seus "codi” nomes). Sei que faria isso sorrindo, pois seus exemplares daquele (e de outros) tempo o fizeram com o terço e bíblias nas mãos, passeando em defesa da família, da paz e em prol de um país do futuro.

Imagino que você-novo intelectual, que sonha com aqueles tempos e usa sua experiencia de vida e impressões daquela época maravilhosa como argumento,  tenha hoje, em 2018, por volta de 80 anos. Explico a conta. Imaginemos que o período da Ditadura tenha começado com o golpe de 64 e tenha terminado por volta de 85 com o processo de “abertura” política. Para poder ter “credibilidade” mínima em sua fala hoje, você deveria ter em 1964, uns 15 anos. E olha, estou sendo bondoso, porque maturidade para essa idade naquela época era saber calcular com exatidão medidas de cuspe (e seus correlatos) a distância. 
Por volta dos anos 70, continuando os cálculos, você deveria (sendo homem e preenchendo uma lista imensa de exigências) ter entrado na Faculdade com 20 anos de Idade. Com acesso à Árvore do Conhecimento do Bem e do mal, você já teria  condições de análise crítica. Teria condições de escolher não se rebelar, porque foi capaz de ver os perigos das ideologias de esquerdas, de identificar os autores perigosos e reconhecer que os militares eram benção de Deus para a vida humana brasileira. Estou certo? Não foi justamente por isso que aquelas centenas de jovens morreram, desaparecem ou fugiram? Porque, diferentemente de você, mereciam a não existência? (Espere, não responda para ter que não denunciar sua cumplicidade com os inúmeros crimes cometidos).

Na década de 80 (entre 30 e 40 anos)  você e todos aqueles que se sentiam seguros na ditadura foram capazes de influenciar os poucos insatisfeitos que queriam o processo de abertura democrática, estou certo? Pois é... estou completamente errado, sabe por quê? Você não existia! Ninguém dava bola pra você. Aliás, nem seu pai, seu professor, seu padre, seu pastor, sua melhor amiga, ninguém queria ouvir absolutamente nada de você, salvo se pudesse falar na língua do “pê”. Sua voz nunca interessou ninguém naquela época. Não se era medido pela capacidade de análise crítica. As medidas eram estrelinhas nos cartazes da Igreja ou da Escola. Leu? Ganhou estrelinha! Fez a continha? Ganhou estrelinha! Ajudou mamãe em casa? Ganhou estrelinha. Limpou o bumbum direitinho? Ganhou estrelinha! Decorou o nome dos missionários? Ganhou estrelinha.

Vamos refrescar a memória? Faça um esforço?!!!!!! Sainha curta? Calça comprida? Sair na rua? Novela? Cabelo comprido? Tatuagem? Balada? Universidade à noite? Cineminha? Namorar? Andar com Católico? Conversar com Evangélico? (Existiam outras religiosidades?) Ter alguma deficiência? Ser negro? Ser gay?

Me desculpem! Não sonham com uma época segura, melhor. Sonham com um retorno a uma vida de mediocridade. Uma vida que não lhes exigia nada senão obediência inquestionável. Uma vida que lhes garantia um destino certo em função de nome, local de nascimento, cor da pele e cruzeiros guardados. Uma vida em que não tinham que construir um futuro melhor para todas as pessoas, de todas as raças, de todas as crenças. 

Não! Você não tinha o que temer porque era uma pessoa do bem, que cumpria regras, porque tinha uma vida digna. Você não tinha o que temer porque era medíocre, porque era uma "pecinha” na imensa engrenagem que perpetuava uma vida de violência, de exclusão, de eliminação de alteridades. 

Hoje, aos seus 80 anos, lembra que era um bom soldado e tem saudades disso. Afinal, na cantiga de infância que embalava sua fama de boa pessoa você aprendia que  "Bom soldado marcha direito, porque se não marchar direito, vai preso no quartel....”.

***Não ponho tudo na conta apenas dos militares, havia um certo “acordo” de certos setores da Sociedade sobre o ideal e as ferramentas de um mundo seguro e feliz.